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Estudo inédito revela impactos da caça comercial na Amazônia no século XX

Análise extensiva de documentos históricos sobre o comércio internacional de peles silvestres sugere maior vulnerabilidade da fauna aquática em relação à fauna terrestre aos cem anos de caça comercial na porção ocidental da Amazônia
publicado: 13/10/2016 13h45, última modificação: 05/03/2018 14h23

Agência Museu Goeldi - A caça comercial deixou profundos impactos na Floresta Amazônica durante o século XX. Mas também deixou uma verdadeira “mina de ouro” em documentação histórica – que aponta direcionamentos para o manejo de fauna na Amazônia nos dias atuais. Um estudo brasileiro, que acaba de ser publicado na prestigiada revista Science Advances, avalia pela primeira vez a resiliência da fauna amazônica sob a perspectiva do comércio internacional de peles e couros silvestres. A pesquisa mostra que, enquanto a caça comercial causou o colapso das populações de espécies aquáticas, a maioria das espécies terrestres, porém, mantiveram extrações relativamente consistentes ao longo do tempo.

Peles de animais em curtume de Manaus na década de 1950A pesquisa, liderada pelo especialista em fauna André Antunes, ligado à Wildlife Conservation Society Brasil (WCS Brasil), revela que, entre as décadas de 1930 e 1960, as 11 principais espécies exploradas comercialmente movimentaram cerca de US$ 500 milhões (reajustados para o ano base de 2015) nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. O estudo estima ainda que, entre 1904 e 1969, um total de 23,3 milhões de animais, de 20 espécies de mamíferos e répteis selvagens, foram caçados para a extração de suas peles nesses quatro estados.

Os autores afirmam, porém, que esses números são subestimados: “É impossível de contabilizar os animais mortos em decorrência de ferimentos graves, ou mesmo as peles contrabandeadas ou não aproveitadas devido ao mal estado de conservação”, aponta a pesquisa de Antunes, que é resultado de um doutorado sanduíche realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e Universidade de Auckland (Nova Zelândia), ao lado dos pesquisadores Rachel Fewster (orientadora pela Universidade de Auckland), Eduardo Venticinque (orientador pelo INPA) e Glenn Shepard (co-orientador pelo Museu Paraense Emílio Goeldi). Colaboraram também para o estudo Carlos Peres (Universidade de East Anglia, do Reino Unido), Taal Levi (Universidade do Estado de Oregon, EUA) e Fábio Rohe (INPA).

Mercado - Segundo o levantamento de fontes históricas, pautavam a praça comercial de Manaus peles e couros de onça-pintada, maracajá-açu, maracajá-peludo, ariranha, lontra, queixada, caititu, veado-vermelho, capivara, peixe-boi, anta, cutia, jacaré-açu, jacaré-tinga, iguana, sucuri, jiboia, jacuraru e jacuruxi.

“O comércio de peles em Manaus, previamente mínimo e focado no veado-vermelho, se diversificou e intensificou logo após a crise nos preços da borracha em 1912. Atingiu um pico primeiro nas décadas de 1930 e 1940 e um segundo pico durante a década de 1960, ambos impulsionados pela aceleração nos preços das peles devido à demanda crescente pelos mercados dos Estados Unidos e Europa”, afirmam os autores.

Caça comercial atingiu vários exemplares da fauna amazônica, como as onçasApesar de, no Brasil, a caça ter sido oficialmente proibida em 1967, brechas permitindo o comércio de peles armazenadas e a baixa fiscalização facilitaram a caça ilegal, até a ratificação da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção (CITES), em 1975. O comércio clandestino de peles silvestres persistiu até os anos 1980, quando a demanda internacional começou a diminuir em resposta à intensificação da CITES e ao declínio da popularidade de peles na indústria da moda. Finalmente, a conferência ECO 92 consolidou a consciência ambiental internacional em 1992.

Os autores discutem a resiliência diferencial à caça comercial entre espécies terrestres e aquáticas, contrastando o acesso à fauna nesses dois ambientes. “Enquanto as áreas alagáveis representam cerca de 12% da Amazônia centro-ocidental brasileira, a grande maioria das habitações humanas são estabelecidas ali, além do que, o acesso é facilitado pelo uso de embarcações, o principal meio de transporte na região onde não há estradas; em contraposição, as florestas de terra firme, além de muita mais extensas, são restritamente acessadas por meio de caminhadas, garantindo extensos refúgios para a fauna. Os refúgio mantém populações íntegras onde as espécies podem se reproduzir livremente da caça, e, através da migração, podem repor os indivíduos caçados nas áreas mais próxima das habitações humana”, diz o estudo.

Conservação - Esse mecanismo, conhecido por dinâmica populacional de fonte-sumidouro (“source-sink dynamics”), é em grande parte garantido pelo modelo Stand do estado do Amazonas na Exposição Universal de Bruxelas, em 1910tradicional de ocupação humana na Amazônia, caracterizado por aldeias e comunidades ribeirinhas dispersas em meio às extensas paisagens naturais. “Esse deve ser o principal mecanismo de resiliência da fauna à caça na Amazônia”, concluem os autores.

No entanto, o queixada, vital para a manutenção de funções ecológicas e um dos poucos ungulados (grupo de mamíferos que apresentam cascos nas extremidades dos membros) florestais que vivem em grupos enormes, parece ter sido seriamente sobre-explorado. Essa espécie merece especial atenção do ponto de vista da conservação e gestão da fauna, principalmente em unidades de uso sustentável e terras indígenas, onde a regulamentação no uso dos recursos naturais tem encontrado respaldo nas políticas socioambientais atuais.

Os autores alertam que o sistema que deu suporte à resiliência das espécies terrestres até mesmo durante o apogeu da era das peles na Amazônia deve entrar em colapso quando a floresta é desmatada ou fragmentada, diminuindo os efetivos populacionais da fauna através da perda de habitat e do aumento do acesso às áreas que até então serviam como refúgios ou fontes. “Se quisermos garantir a conservação da fauna e a soberania alimentar das centenas de povos tradicionais amazônicos, será necessária a manutenção da interconectividade da floresta e dos rios para além dos limites de unidades de conservação e territórios indígenas”, ressalta o estudo.

Texto: produzido com a colaboração de Glenn Shepard Jr.