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Agência de Notícias

Um manifesto sobre Raimundo Rodrigues, conselheiro assassinado da Rebio Gurupi

publicado: 28/08/2015 15h15, última modificação: 28/02/2018 10h59

Agência Museu Goeldi - A Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi, unidade de conservação ambiental, perdeu um dos seus conselheiros. Raimundo Santos Rodrigues, líder comunitário e conselheiro da Rebio, órgão associado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foi assassinado a tiros nessa terça-feira (25) em Bom Jardim, no Maranhão. A Polícia Federal está investigando o crime.

Localizada no Maranhão, no Centro de Endemismo mais degradado da Amazônia Brasileira, a Rebio Gurupi é circundada por 3 áreas indígenas: Alto Turiaçú, Awa e Caru. Somando-se às terras indígenas, a Reserva compõe o último grande bloco de remanescente florestal na região, com extensão de 11.628 km2. Rica em biodiversidade, a Rebio Gurupi com seus 271.197 hectares é a única Unidade de Conservação de Proteção Integral da Amazônia Maranhense.

A Rebio é local dos estudos científicos desenvolvidos pelo Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio Amazônia Oriental), programa nacional coordenado na Amazônia Oriental pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), que pesquisa há décadas no Vale do Gurupi.

O Museu Goeldi divulga o manifesto da bióloga Marlúcia Martins, conselheira da Reserva Biológica de Gurupi, ex-coordenadora do PPBio Amazônia Oriental  e de Pesquisa e Pós-Graduação do MPEG, sobre a importância da luta das comunidades de Gurupi e da Amazônia na conservação do Vale do Gurupi, e o esforço de Raimundo Santos Rodrigues, a mais recente vítima dos conflitos regionais.

Leia abaixo o manifesto de Marlúcia Martins.

“Nós temos o direito de ter um lugar para viver, mas os animais também têm”.  Esta é a frase que eu lembro que o Sr. Raimundo Rodrigues proferiu no final da oficina de capacitação dos conselheiros da REBIO, demonstrando através de seu modo simples de ser a compreensão sobre o direto à vida, a importância da floresta e a necessidade do equilíbrio entre o atendimento às necessidades humanas e a conservação da biodiversidade.

Entender estes princípios e assumir sua responsabilidade de cidadão custou a vida do Sr. Raimundo, brutalmente assassinado nesta última terça-feira. E, por pouco, seis crianças não ficaram ao mesmo tempo privadas também da mãe, pois a esposa do Sr. Francisco, Dona Maria, também foi uma vitima quase fatal do atentado.

O Sr. Raimundo, assim como muitos outros moradores da Rebio do Gurupi, fazia parte de um conjunto de pessoas que, levadas pelas necessidades de uma terra para plantar e um lugar para abrigar a família, foram empurrados para os últimos remanescentes de floresta existente nas terras do Maranhão. Assentados lá sem que soubessem que estavam ocupando uma área designada à conservação da biodiversidade da Amazônia Maranhense, último reduto para abrigar mais de 20 espécies ameaçadas de extinção, por serem dependentes de uma floresta que já não existe mais.

Mas Seu Raimundo, assim como muitos dos seus companheiros, não faziam ideia desta destinação. Muitos foram assentados pelo INCRA, outros pelo ITERMA e outros deles foram se chegando, “engrossando” o povoado, como diz o caboclo, sem ter outras alternativas de onde ficar. Mas aos poucos, entre uma conversa e outra, eles foram descobrindo que aquele lugar era distinto. Que os assentamentos e ocupações estavam dentro de uma área federal. Uma tal de REBIO.

Alguns funcionários do ICMbio começaram a visitar as comunidades e a convidar as pessoas a conversarem sobre o fato deles estarem vivendo dentro de uma reserva federal. O Sr. Raimundo se interessou pela questão e, eleito por sua comunidade foi ser conselheiro desta REBIO. O que o Sr. Raimundo queria com isso? Ele queria uma estrada para levar a produção. Ele queria uma escola para seus filhos, queria ter acesso à saúde e, mais do que tudo, queria viver num lugar que fosse seu. E assim, o Sr. Raimundo e a dona Maria levaram seus sonhos e de toda a sua comunidade para o Conselho da REBIO DO GURUPI.

Estando no conselho, ouvindo as conversas e participando das discussões o Sr. Raimundo foi compreendendo, pouco a pouco, o significado da palavra REBIO (Reserva Biológica). Foi entendendo que a floresta guarda muitos tipos diferentes de seres vivos e que estes seres vivos, ao mesmo tempo que dependem da floresta, também são os responsáveis pela sua manutenção. O Sr. Raimundo foi compreendendo também a importância da floresta para a sua própria vida, para a manutenção dos seus cultivos, para ter água farta, para ter as abelhas para polinizar as plantas. E assim, passo a passo, o Sr. Raimundo foi entendo que defender a floresta era também defender uma vida digna para ele e sua família e para as famílias dos demais moradores, que viviam na mesma situação que ele. 

Ele sabia de certo que não poderia passar o resto da vida dentro da Reserva, que era preciso garantir aos seres da floresta o espaço necessário para sua manutenção. Mas Seu Raimundo, assim como outros comunitários, seguiu confiante no andamento das negociações intermediadas pelo Conselho, lutando para garantir direitos e definir deveres enquanto na REBIO estivessem e para que a saída dos moradores do Gurupi, quando for o momento, seja feita de forma justa e com a dignidade merecida àqueles cidadãos que ali se instalaram de boa-fé. Como conselheiro, o Sr. Raimundo passou então a exortar os demais comunitários que, enquanto ali estivessem, buscassem uma convivência harmoniosa com a floresta, retirando dela apenas o mínimo necessário, respeitando as plantas e animais, obedecendo às determinações legais, evitando utilizar queimadas nos cultivos e principalmente evitando a derrubada da floresta ainda nativa.

Esta demonstração de boa vontade e exercício de cidadania e respeito à vida custou a vida do Sr. Raimundo. E porque isso? Há razões para o absurdo? Há razões para a ganância? Há razões para os bandidos? Há razões para o desafio desmedido à lei e a ordem pública?

É possível que o mercado ilegal de madeira continue se sustentando com vidas humanas? Chico Mendes, irmã Dorothy, Zé Claudio, Maria do Espírito Santo, Sr. Raimundo... E quantos mais precisarão morrer para que a nossa sociedade dê um basta a isso? Quem compra madeira ilegal está matando o senhor Raimundo. Quem se deixa corromper para acobertar os madeireiros está matando o sr. Raimundo. Quem não assume suas responsabilidades de cidadão está matando o Sr. Raimundo.

E o mais triste de se constatar é que o senhor Raimundo morreu, foi assassinado somente porque ele compreendeu o quanto VIDA é importante.


Marlucia Martins

Conselheira da REBIO

Pesquisadora do Museu Goeldi/MCTI